Por Danilo Quintal
Doze dias, doze noites e doze anos. Tudo resumido em menos de vinte e quatro horas. Doze dias atrás, meu pai dava entrada ao pronto socorro, em um hospital público na zona norte de São Paulo, com um quadro gravíssimo de diabetes e o fígado debilitado. Ambos ocasionados pelo álcool. Uma escolha que sempre respeitei, embora, na maioria das vezes, tenha prejudicado não somente ele, mas todos em sua volta.
Durante esses doze dias fui visitá-lo em todos. Primeiro dia, ao entrar na sala do pronto socorro, em alguns meses sem vê-lo, tive um choque com o estado deplorável que estava. Fiquei tão impressionado que as lágrimas que escorriam por dentro secaram antes que rolasse pelo rosto, tal era o frio que sentia minha alma.
Um senhor magro, ou melhor, pele e osso, com olhos amarelos, dentes amarelados, barbudo, sem força para pronunciar uma palavra, ir ao banheiro, levantar a mão para pegar um copo d’água. Sem força para viver...
Dia após dia, cada segundo, refeição, banho e troca de fralda era uma vitória. É como se afastássemos a morte de perto. Era também um martírio, como se cada gole de pinga com coca, rabo de galo, fosse retirado do seu fígado com uma pinça.
Mesmo com todo esse estado, “meu velho” não sentiu nem sequer por um segundo dor. Passou todos esses dias, nessa situação, sem sentir uma pontada ou um beliscão de agulha. Absolutamente nada.
Tudo se resume em quase nada
Domingo, dia 11 de novembro de 2011, os relógios da Freguesia do Ó badalam às 18 horas. Passo a catraca da área de visitantes do hospital e subo ao terceiro andar onde está internado meu pai e ajudo as enfermeiras a servir o jantar a ele. No quarto, estão mais três paciente.
Ao lado direito do meu pai está o senhor Julio que apenas abre os olhos verdes e pronuncia apenas uma palavra: “Casa! Casa! Casa” seguidas vezes sem cessar. À frente do meu pai está um senhor bem lúcido chamado José. Apesar da lucidez, o braço esquerdo é inútil, não se move para nada, e a pronuncia da fala está um pouco debilitada, não sei o certo qual é o quadro, meu pai diz que é mal de chagas, a doença do mosquito “barbeiro”.
Ao lado do José, está o senhor João, totalmente debilitado por varias doenças como câncer, diabetes e, para piorar, ele caiu ao se levantar da cama e fraturou o fêmur. Seus olhos já não abrem para luz do dia. Mas as pronuncias dos lábios são muitas, em especial três nomes. Com uma voz autoritária, como ordenar-se a presença, grita várias vezes ao dia: “Dolores! Dolores! Cadê você, Dolores?”
Quando alguém se aproxima, e é do sexo masculino, com uma voz doce e de admiração ele fala: “Gustavo! Gustavo, eu estava te esperando!” E outras poucas vezes ele pede: “Julia, Julia, me tire daqui!”
Fiquei imaginando quem fosse cada um, até criei a fisionomia deles. E, de repente,o senhor se cala. Meu pai termina de comer, ajudo-o a ir ao banheiro. Ele deita-se novamente. Aguardo um pouco para ver se ele dorme. Um silêncio reina em absoluto no quarto, enganosamente por quinze segundos, uma introdução, para uma oração...
Senhor João começa a gritar: “Me leva, Jesus. Ó, pai, me leva!”
E emenda uma oração cristã: “Vinde Espírito Santo, enchei os corações dos vossos fiei. E acendei neles o fogo...”
E assim, sucessivamente, implorava para o Deus da sua fé levá-lo. O senhor ali, jogado na cama, parecia tão inútil, abandonado, que não podia, ao menos, morrer sozinho. Precisava de ajuda para morrer. E aos sons de gritos religiosamente de apelos à morte, eu me despeço do meu pai e vou embora.
No dia seguinte, ao chegar ao hospital, por volta das 8 horas, meu pai está de alta. Um pouco debilitado ainda, mas com uma grande e visível melhora no estado em geral. Pergunto como foi durante a noite e ele começa a gargalhar, dizendo que o senhor João rezou o “Credo” a noite inteira e após cada oração dizia: “Eu estou indo quem quer vir comigo?”
Meu pai, já com o humor irônico de toda vida, respondia: “Vá em paz, seu João... Pretendo ficar aqui ainda!” E mais risos.
Essas poucas e últimas horas do meu pai na internação relatam a luta pela vida, de tantos e milhares de seres humanos, e a luta pela morte, de seres que por conseqüência da vida não podem nem ao menos morrer.
Foram doze dias, doze noites, que ao fim valeram para eu poder ter, doze anos depois que meu pai separou da minha mãe, momentos de pai e filho. Conversas bobas, compartilhamentos de segredos, compartilhamentos de aventuras.
E para quem acredita em numerologia, o que realmente não é o meu caso, o meu dia acaba às doze horas do dia 12 de dezembro. Ao meio dia, meu pai adentra sua casa após os doze dias, me oferece algo para comer e, conversa vai e conversa vem, descubro que minha adoração por pimenta vem dele. E, de quebra, me ensina a receita de uma pimentinha caseira que o meu avô fazia. Receita familiar gravada, herança que prossegui. De fundo, o som “Corazon Partio” de Alejandro Sanz, nem sei dizer se a música é boa, mas sempre que ouvir terei boas lembranças. E dali ao restante do dia não importava mais nada que acontecera
Esperei doze anos, por um momento de pai e filho. E o que me proporcionou esse momento de vida forem dias de quase morte. Há morte e há vida.
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